A herança <br> de Martin Luther King

António Santos

Quinhentas, seiscentas, duas mil pessoas… Ao princípio é difícil contá-las. Desafiam o frio glaciar de Massachusetts e avançam em bloco, contra o vento e através da lama, preenchendo por completo o passeio estreito da auto-estrada. Depois, de forma perfeitamente coordenada, ultrapassam o lancil e cortam o trânsito. Então, uma enorme faixa abre-se para a cidade de Boston, onde se pode ler «A vida dos negros conta», recordando à América e ao Mundo, que a terceira segunda-feira de Janeiro é o Dia de Martin Luther King Jr.

Há muitas décadas que, para o comum dos norte-americanos, o Dia de Martin Luther King Jr. era só mais um feriado na anódina agenda política dos EUA. Mas a recente explosão do movimento Black Lives Matter (a vida dos negros conta) tem dificultado as contas aos que pretendiam esterilizar a figura de Martin Luther King Jr. como um inofensivo ídolo de barro da cultura pop. As celebrações da passada segunda-feira foram acompanhadas por mais de 150 protestos, que da Flórida ao Colorado exigiram o fim do racismo e direitos para quem trabalha. Numa das maiores manifestações nacionais, em Filadélfia, dezenas de milhares de pessoas marcharam pelo aumento do salário mínimo para 15 dólares por hora, em defesa da educação pública e contra os chamados «perfis raciais» adoptados pela polícia para criminalizar afro-americanos e imigrantes.

Repressão policial

Nicole Sully, que esteve entre os cerca de trezentos detidos que participaram no corte de 14 auto-estradas nas principais cidades dos EUA, explicou ao Avante! a natureza simbólica do protesto: «28 minutos a bloquear as auto-estradas do país para lembrar cada afro-americano morto pela polícia a cada 28 horas». Segundo Nicole, o que explica a força deste movimento é a capacidade de articular a ligação entre o racismo, a guerra a injustiça económica do capitalismo, as duas impressões digitais da História dos EUA. Para Nicole, «é bom assistir ao nascimento de um movimento de classe nos EUA, que una os pontos entre as pequenas lutas e mostre que só a luta dos trabalhadores pode vencer este sistema».

Nicole, como muitos outros detidos, é acusada de ter cometido cinco crimes, que podem significar até sete anos de prisão e incluem «desobediência à autoridade», «perturbação da paz pública» e «impedimento do trânsito». «Não sei como vou pagar a um advogado com o meu salário da JC Penny (uma cadeia de supermercados) mas isto só prova que a nossa luta é justa: os mesmos que nos prendem por exigir um salário mínimo justo e por combater o racismo são os que matam crianças negras desarmadas, à queima-roupa, sem serem acusados de qualquer crime. Para eles, meia hora de espera no trânsito vale mais que a vida de uma criança».

Os paramédicos da luta de classes

Historicamente, o principal mecanismo de coarctação do desenvolvimento da luta de classes nos EUA tem sido a cooptação dos movimentos operários para as fileiras do Partido Democrata. Foi assim que o capitalismo conseguiu deter o sindicalismo revolucionário nos anos setenta, esvaziar o movimento pelos direitos dos imigrantes na década de 2000 e, mais recentemente, decapitar o Occupy Wall Street. Porém, a cada dia que passa e o Black Lives Matter estreita as sua ligação aos movimentos dos trabalhadores, adoptando as suas reivindicações, torna-se mais difícil uma apropriação directa, o que ajuda a explicar o recrudescimento na repressão policial.

Martin Luther King, que também conheceu a repressão policial, que sempre se opôs ao imperialismo dos EUA e nunca abandonou os piquetes dos trabalhadores em greve, escreveu em 1967, estas palavras, que desafortunadamente também poderiam ser de 2015: «Não há nada de errado com uma lei do código da estrada que nos obriga a parar no sinal vermelho. Mas se há um incêndio, os bombeiros ignoram os semáforos e não há sinal vermelho que os detenha. Ou, se um homem estiver a esvair-se em sangue, as ambulâncias passam os stops à máxima velocidade. Um incêndio deflagra no coração dos negros e dos pobres, que vivem em condições trágicas por culpa de terríveis injustiças económicas. Os povos deserdados de todo o mundo estão a esvair-se em sangue de profundas feridas económicas e sociais. Precisamos de brigadas de paramédicos que ignorem as luzes vermelhas deste sistema até a emergência estar solucionada.»




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